Por Cristóvão Macedo SoaresSócio da BOSISIO Advogados

Parte da comunidade jurídica e o próprio Advogado Geral da União receberam com entusiasmo a decisão proferida em embargos de declaração pelo Ministro Ricardo Lewandowski, nos autos da Medida Cautelar na ADI número 6363, que esclareceu ter em imediata eficácia os acordos individuais celebrados na formada MP936/2020. Reconheço, com importantes ressalvas, uma diminuição da insegurança jurídica causada pela decisão monocrática inicial, que basicamente tornava inócua a aplicação da aludida medida provisória, mas, ainda assim, acredito que o Supremo Tribunal Federal, na sua composição plena, não venha referendar as premissas e condições impostas pelo E. Relator.

A r. decisão parte do princípio de que a previsão da MP de mera comunicação dos acordos aos sindicatos (parágrafo quarto do art. 11), os relegaria a um papel de arquivista de contratos, mesmo reconhecendo, na sequência da fundamentação, que a intenção principal da liminar seria a de permitir o exercício pelas entidades sindicais do múnus fiscalizatório que lhes foi atribuído pelo art. 8º, III, da CF, não percebendo, dv, que era exatamente essa a ratio da comunicação estipulada no citado dispositivo da MP, como requisito fundamental para a validade dos acordos, permitindo a atuação sindical na assistência e defesa dos seus representados.

É curioso que, ao mesmo tempo em que enaltece a indispensável participação da representação sindical, como garantia da legitimidade, moralidade e equidade do negócio, a r. decisão atribui o risco maior de insegurança jurídica a uma possível estratégia oportunista dos próprios sindicatos profissionais, que, ao invés de fiscalizarem os contratos comunicados, poderiam utilizar-se ardilosamente das informações recebidas, para, no futuro, contestarem em Juízo os acordos que resultaram na manutenção de empregos (mais curioso, ainda, é que essa discutível ocorrência cogitada pelo E. Relator, justificada ou não, não estaria impedida pela liminar anterior e nem pela atual). Além disso, classifica como falácia a argumentação de que foi garantida a manutenção do salário/hora, olvidando que o negócio jurídico tripartite construído pela medida provisória trata, na verdade, de uma “redução do contrato“, direcionada a assegurar, com a participação da União, a concessão do mínimo existencial constitucionalmente previsto, e, ainda, ao final, sustenta, que é nos momentos de adversidade que a CF deve receber a mais rigorosa interpretação, pois“ contratempos que possam eventualmente advir da participação dos sindicatos nas negociações não tem o condão de sensibilizar o intérprete do texto constitucional, voltado, por dever de ofício, a prevenir valores superiores de convivência social nele abrigados. “ Dessa fundamentação, que se propôs, na verdade, a defender as razões da r. decisão original, desaguou uma heteredoxa conclusão, que, por sua vez, sem a preocupação de harmonizar motivação e dispositivo, buscou evitar a completa inutilização da MP, decidindo no sentido de que, embora os acordos individuais sejam válidos e eficazes desde as suas assinaturas, os seus subscritores poderão “aderir“ a convenções ou acordos coletivos que venham a ser celebrados após a comunicação aos sindicatos (normas essas cuja celebração nunca foi impossibilitada a partir da comunicação do sindicato), quando então se observará o princípio da norma mais favorável ao trabalhador.

Não será tarefa fácil desvendar o que significa a tal adesão, que por si só desqualifica os princípios de uma negociação coletiva e que, de todo modo, não é compatível com as regras de abrangência das normas coletivas em geral, considerando-se que o empregado está ou não inserido no contexto de uma convenção ou acordo coletivo segundo os conceitos de representatividade e territorialidade e do teor das cláusulas de elegibilidade estabelecidas nas próprias normas. Ademais, não seria possível comparar, v.g., uma convenção coletiva com os termos específicos de um acordo emergencial para se aferir qual seria a norma mais benéfica (adotar-se-ia, também heterodoxamente, a extinta teoria do conglobamento para cotejar uma CCT com um acordo tripartite provisório decorrente do reconhecido estado de calamidade pública?). O mais grave, entretanto, nem são as incongruências ou mesmo a narrativa que submete o leitor a um mundo fictício, como se a pandemia que vem ceifando vidas, extinguindo estabelecimentos e causando desemprego em massa, fosse parte do enredo de um filme, capaz de entreter, com mesma atenção, os aprisionados pelo pensamento radicalmente ideológico, por mais distintas que sejam as suas posições.

O que mais preocupa na r. decisão liminar, complementada pelas razões e conclusões a ela aduzidas na apreciação dos embargos, é que ao se dizer rigorosa e inflexível na defesa dos princípios constitucionais, acima de qualquer “ contratempo “, ela, com todas as vênias, passa ao largo do maior deles, que assegura o direito à vida, umbilicalmente ligado, sobretudo na presente situação, ao direito constitucional à saúde. Não há razoabilidade alguma em se sobrepor a defesa de uma controversa irredutibilidade salarial sem negociação coletiva ao direito à vida, cuja índole é necessariamente individual e intransferível, pois não afeta terceiros ou qualquer coletividade. Em tempos de pandemia, que nos retira a todos, pela força maior do vírus, o caríssimo direito de ir e vir, além de outros vinculados ao direito de liberdade, não se pode conceber que a autonomia da vontade privada coletiva, que se manifesta em situação de normalidade pela representação sindical, prevaleça sobre a vontade individual e decida se o trabalhador, no quadro atual, manterá ou não o seu emprego ou se alimentará ou não a sua família.

Se há erro na MP 936, que já proporcionou a manutenção de milhares de empregos, não é pela validação provisória de acordos individuais, que já despontava como regra maior da MP 927, à qual o Ministro Marco Aurélio Mello conferiu inequívoca constitucionalidade. Esse erro, a meu sentir, consiste em não estender essa regra, explicitamente, a todos os trabalhadores, independentemente do patamar salarial, haja vista que, no momento, observado o pressuposto fundamental da boa-fé, a ser fiscalizado pelos sindicatos, não há, como regra quase absoluta, quem detenha poder de barganha ou capacidade negocial, havendo, apenas, entre empregados e empregadores o interesse comum e recíproco de subsistência. O que se cobrava, e tardou a chegar, era a participação efetiva do Estado, impondo-se agora que se permita a sua indispensável operacionalização.

Espera-se que o Plenário do E. Supremo Tribunal Federal seja sensível à realidade, aplicando a Constituição Federal com a rigorosa prevalência dos seus princípios mais fundamentais, de preservação da vida e da dignidade da pessoa humana, que não se coadunam com os fundamentos da r. decisão liminar, antes ou depois dos embargos de declaração.

Fonte: LinkedIn

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