Conversando um dia desses sobre música com um dos meus filhos, ele me fez a seguinte provocação: – Tirando Beatles, Miles Davis e John Coltrane, Beethoven e Mahler, não há nada melhor do que Leonard Cohen.
Entendi que ele não estava fazendo uma comparação e nem limitando o número de fenômenos populares atemporais, ícones do jazz ou gênios da história da música clássica, apenas realçando a importância do poeta, romancista e músico canadense, falecido em 7 de novembro de 2016.
Concordei e dei linha na conversa, não só por gostar muito de L. Cohen, mas sobretudo para descobrir de onde vinha aquela sacada, porque a obra musical de Cohen, do seu primeiro álbum, de 1967, “Songs Of Leonard Cohen”, até o décimo quinto, “Thanks For The Dance”, lançado postumamente em 2019, não é instantaneamente convidativa.
Depois de algum reconhecimento como escritor, principalmente como romancista, inspirado pelo exílio voluntário na ilha de Hydra, na Grécia, onde conheceu a sua eterna musa, a norueguesa Marienne Ihlen, Cohen encontrou na música o habitat perfeito para declamar sua poesia e suas histórias, numa atmosfera introspectiva, melancólica e muitas vezes sombria.
Embora seja cultuado por diferentes gerações, tendo os seus maiores sucessos gravados e interpretados por uma gama diversificada de artistas, não é fácil se apaixonar pela sua música.
Pude notar, então, que meu filho já havia percorrido um caminho que lhe permitia opinar, com muito mais autoridade do que eu, sobre a relevância de Cohen. E o que lhe movia era a complexidade, desde as letras até as originalíssimas interpretações, que o induziam a pesquisar, ir e voltar em canções que, se inicialmente não despertavam grande interesse, passavam com o tempo a causar intensa emoção e a levar à percepção dos detalhes minimalistas e sofisticados nos seus discretos acompanhamentos instrumentais e vocais.
Essa introdução intimista não é sobre música. Ela se propõe, a partir da citação de um artista incomum, a ressaltar que precisamos resistir à tentação, advinda, em boa parte, do oferecido mundo tecnológico e hiper digital, de a tudo simplificar.
As relações humanas são complexas e as ciências, assim como as artes, exigem intensa dedicação intelectual, o que não é suprível por fórmulas simplistas.
A ciência do Direito, v.g. sobre a qual, como advogado, tenho legitimidade profissional para opinar, é algo bastante complexo, que sofre hoje uma confusa tentativa de simplificação a qualquer custo, pela difusão do chamado visual law e das digital techs.
Vejam, longe de me contrapor à inexorável revolução tecnológica e de nutrir o menor preconceito a introdução de uma forma de comunicação jurídica mais inclusiva, que possa, inclusive, quebrar o enfadonho paradigma estabelecido pelo STF, reconheço a necessidade do uso, pelos operadores do direito, de modernas ferramentas de gestão e, afora a consolidação dos despachos, audiências (com ressalvas) e sustentações virtuais, considero a produção de provas digitais um caminho sem volta, desde que sejam preservadas a idoneidade e/ou validade dos meios para a obtenção dos elementos probatórios, observado o contraditório bem como a fronteira legal, que separa os deveres processuais de responsabilidade exclusiva das partes, do que pode, excepcionalmente, caber como iniciativa, ex officio, do juiz.
No entanto, essas novas ferramentas são acessórios que servem à otimização da aplicação do Direito, não a sua alteração para um modelo simplificado. O que se vê, ainda que em prática embrionária – falo mais especificamente da Justiça do Trabalho, onde milito – são experimentos sem utilidade, que, em verdade, mais complicam do que facilitam o andamento processual: decisões sem fundamento jurídico, apresentadas à base de símbolos gráficos e cores, petições com design sofisticado e resumos esquemáticos, também organizados sob colorações distintas, acompanhados, todavia, de argumentações prolixas e de raso conteúdo.
Juízes não podem ser tratados como consumidores, que privilegiarão o produto que lhes poupar, pela estética, do fardo de apreciar exaustivamente os elementos dos autos e as teses jurídicas apresentadas. Por sua vez, não devem supor que decisões desenhadas atenderão aos requisitos legais, ao pretexto de alcançarem a capacidade de compreensão dos jurisdicionados, como se os advogados fossem supérfluos ao invés de indispensáveis à administração da justiça.
Simplicidade e simplismo definem ações e comportamentos muito diferentes. O objetivo comum, nas relações humanas, nas relações profissionais, na aplicação das mais distintas modalidades de ciência, nas artes, na vida em geral, deve ser sempre o de simplificar as coisas, ou seja, descomplicá-las, o que não quer dizer ignorar a sua essência, desprezar aspectos fundamentais e deixar de lidar com as complexidades que lhes são inerentes. A frase atribuída a Albert Einstein, “tudo deveria se tornar o mais simples possível, mas não simplificado”, vem à socorro da minha explanação.
Tornar o Direito o mais acessível não é fazer dele uma ciência irrealisticamente simples, é, ao contrário, tarefa de extrema complexidade, que só os grandes conseguem. Convivi com alguns, em especial com Carlos Eduardo Bosisio, que, às custas de muito suor, lograva, sem economizar no desenvolvimento das teses que considerava relevantes para uma defesa, explicá-las em termos que, além de aguçarem o interesse dos julgadores, eram palatáveis e de fácil compreensão para seres normais, como eu, por exemplo.
Tal acessibilidade não terá razão de ser pela mera supressão de laudas e utilização – que é bem-vinda – de técnicas de visual law, relegando-se o mais importante, que é o investimento no conteúdo e na formação de bons profissionais do Direito.
Todavia, o alastramento, politicamente correto, da epidemia do simplismo não se restringe a questões processuais objetivas. O esvaziamento da competência da Justiça do Trabalho é uma realidade que vem se materializando em recentes decisões do Supremo Tribunal Federal, transferindo para a Justiça Comum a responsabilidade de dirimir conflitos decorrentes de relações de trabalho, sob uma verdadeira ginástica hermenêutica a fim de tangenciar as disposições claras do art. 114 da CF, com as alterações introduzidas desde a E C 45/2004.
O impulso da Suprema Corte parece ser o de podar uma renitente postura do judiciário trabalhista de se opor à legislação vigente e seguir fomentando uma máquina de estímulo à judicialização.
Ainda que se admitisse alguma virtude nesta finalidade – o que não vislumbro – os meios são puramente simplistas, pois não enfrentam o problema e, ademais, afastar a Justiça do Trabalho dos conflitos entre o capital e a força de trabalho, originados de qualquer espécie de relação de trabalho, só os intensificará, reduzindo as perspectivas de boas soluções.
Dando azo aos impulsos do STF, e de parte do Poder Legislativo, a Justiça do Trabalho, embora fundamental e muito bem equipada, contribui autofagicamente para o seu esvaziamento, através da crescente escalada de uma improdutiva polarização – ora descrita com proposital simplismo – entre o time da resistência pela indisponibilidade irrestrita dos direitos fundamentais do trabalhador (que, para esse lado, seriam todos os previstos na antiga CLT) e o time da aplicação pragmática e fria da Lei vigente, times esses integrados por magistrados e advogados. Há, obviamente, exceções, aqueles que se propõem, às claras, a um debate jurídico plural, e acabam sendo estigmatizados e excluídos (ou cancelados) pelos donos da bola.
A polarização, política, corporativa, ideológica…, é a própria síntese do simplismo, na medida em que paralisa a capacidade cognitiva dos agentes envolvidos, promovendo debates apenas entre convertidos por uma mesma causa e estimulando a dicotomia, quase religiosa, entre o bem e o mal, o certo e o errado. A militância ideológica, quando amalgamada com a vida profissional, carrega, ainda, impensada e sintomaticamente, um grau significativo de culpa, criando uma bolha defensiva, um verniz de auto proteção para inibir, ao primeiro sinal, a compreensão de que estamos, juízes e advogados, de fato, ao menos primordialmente, cuidando dos nossos próprios interesses e não da justiça social. E, no caso da pura militância ideológica, que atrai uma geração prejudicada pelo estreitamento de oportunidades profissionais e pela deformação do conceito de ideologia, ela se transforma na providencial muleta, que legitima uma existência dedicada a estar do lado certo da história, poupando, os que se sacrificam por esse fantasioso ideal, dos riscos, exposições e responsabilidades do mundo real.
O simplismo, ou a busca indistinta por estereótipos, torna tudo mais complicado.
Seguindo no mesmo escopo, agora invadindo uma seara altamente tecnológica, a dos algoritmos, cito o magnífico trabalho desenvolvido pela Dra. Ana Frazão, Advogada, Árbitra e Professora Associada de Direito Civil, Comercial e Econômico da Universidade de Brasília-UnB, na sua série de artigos, ainda em curso, sobre discriminação algorítmica.
A autora, que mergulha profundamente nos seus complexos temas, e consegue transmiti-los, naturalmente, com a rara simplicidade a que anteriormente me referi, demonstra, entre diversas outras questões, a sua preocupação com a falta de interação entre os programadores dos algoritmos e os seus gestores ou executores, gerando um gap de responsabilidade quanto aos resultados e suas consequências, em relação a qual os programadores não se sentem comprometidos e os gestores, por seu turno, julgando-se incapazes de discernir a confiabilidade das predições, ou apenas executam os sistemas de inteligência artificial, sem o indispensável senso crítico, terceirizando a responsabilidade ou, pela mesma razão, simplesmente não os incorporam aos seus arcabouços decisórios:
“(…)
Consequentemente, uma forte confiança em sistemas automatizados pode alterar as relações das pessoas com as suas tarefas, criando uma espécie de “para-choque” entre as decisões e os seus impactos, com a consequente perda do senso de responsabilidade e da accountability.
Daí o receio de que decisões algorítmicas, embora tenham sido desenhadas para reduzir os erros humanos, possam causar ainda mais problemas”. (publicado no Jota, em 28/7/21, parte VIII da série de artigos).
Essa breve referência, em tema de inequívoca complexidade, afeto tanto à esfera pública quanto ao meio corporativo, nos mostra uma negligência, involuntária ou não, no tocante a normas de responsabilidade e de ética (accountability). Talvez a falta de entrosamento técnico e estratégico entre programadores e gestores dos sistemas algorítmicos que permeiam a nossa sociedade, seja uma opção por uma operação descomplicada, caracterizando outro exemplo da recorrente tentativa de simplificar o que é complexo por natureza (mais ou menos como se um juiz estabelecesse um padrão único de julgamento, que o isentasse de interlocução com os advogados, de uma análise detida das provas produzidas e das teses jurídicas pertinentes a cada caso). E talvez eu esteja sendo apenas simplista.
Essa geleia de considerações serve, ao cabo, apenas como um registro da minha preferência pelo respeito à complexidade das coisas, em contraponto ao decantado princípio da simplicidade, que, a meu ver, não existe, senão como óbvia orientação, ou lembrança do que já está positivado no sentido de se evitar formalismos exagerados em determinados e específicos procedimentos legais, no que não se enquadram, em absoluta regra, os conceitos e princípios gerais da ciência do Direito e nem as obrigações básicas de advogados e juízes na prática dos seus misteres – aqui, sem nenhuma correlação direta com a teoria da complexidade ou com o chamado pensamento complexo, e, repetindo, sem preconceito algum ao uso adequado de meios tecnológicos e digitais que sirvam a um propósito efetivo.
O meu contraponto, politicamente incorreto, é, portanto, à compulsão a soluções simplistas, nocivas à educação e ao desenvolvimento do ser humano, porquanto negacionistas da complexidade que nos cerca, a ser enfrentada, e, sim, amenizada, dentro do possível, não através da aplicação de fórmulas e da polarização que limita o pensamento, pelo investimento no saber, que é o que nos torna capazes de extirpar os excessos e produzir soluções genuinamente simples.
Uma das minhas canções favoritas de Leonard Cohen é “Famous Blue Raincoat”, do Álbum “Songs of Love and Hate”, de 1971.
Com a sua voz de barítono, ele recita, ou simplesmente lê uma carta, escrita por alguém – que necessariamente não é o próprio Cohen, apesar da assinatura ao final-, para um rival, não identificado, na relação amorosa com Jane, uma personagem fictícia.
A música e a letra, que foram objeto de um magistral texto do jornalista Arthur Dapieve, no Correio IMS, adquirem uma força extraordinária, primeiro pelo formato de carta redigida à mão, que, hoje em extinção, gera uma emoção mais vigorosa e autêntica, depois pela perfeita sintonia entre letra, ritmo e voz, e, finalmente pelo seu conteúdo denso e ambíguo, que conjuga dor, raiva, amor, equilíbrio e redenção. Jane é a construção da liberdade e o autor, dividido entre a mágoa e a absolvição, se dirigindo ao destinatário da carta, o seu rival, como “meu irmão, meu assassino”, expõe a complexidade e a riqueza da vida:
“It’s four in the morning, the end of December
I’m writing you now just to see if you’re better
New York is cold, but I like where I’m living
There’s music on Clinton Street all through the Evening
(…)
Yes, and Jane came by with a lock of your hair
She said that you gave it to her
That night that you planned to go clear
(…)
Ah, the last time we saw you you looked so much older
Your famous blue raincoat was torn at the shoulder
You’d been to the station to meet every train, and
You came home without Lili Marlene
And you treated my woman to a flake of your life
And when she came back she was nobody’s wife
(…)
Well, I see Jane’s awake
She sends her regards
And what can I tell you my brother, my killer
What can I possibly say?
I guess that I miss you, I guess I forgive you
I’m glad you stood in my way
If you ever come by here, for Jane or for me
Well, your enemy is sleeping, and his woman is free
(…)
Sincerely, L Cohen “
É impossível reduzir esses versos – passíveis de diversas outras interpretações – igualmente como ocorre nas relações humanas, na ciência em geral, e, em suma, na vida, a um formato pré-fabricado, do mesmo modo que é falsa a premissa que se quer impor de que tudo deve ser simplificado.
Se por acaso você não conhece L. C. ou se ainda não tem um veredicto sobre a sua obra, vale a pena, em benefício do respeito à complexidade, e do estímulo ao politicamente incorreto, que tanta falta atualmente nos faz, lhe dar uma chance.